20/01/2025

Historicamente, as cidades foram sendo construídas à margem dos rios, para facilitar o abastecimento de água para as diversas atividades humanas. Exemplos não faltam, seja no Egito antigo, ao longo do Rio Nilo, seja na cidade de São Paulo, ao longo dos Rios Pinheiros e Tietê, por exemplo. Porém, apesar de ser fundamental para a vida humana, os rios passaram a ser desprezados e vistos como entraves ao desenvolvimento. Suas margens foram desmatadas, suas águas passaram a receber todo tipo de dejetos e muitos foram até canalizados. Os rios também passaram a ser represados, tanto para o abastecimento de água, quanto para a produção de energia.

O documentário “Entre Rios”, produzido pelo Coletivo Madeira, mostra esse processo na cidade de São Paulo e está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Fwh-cZfWNIc.

Atualmente, é crescente a necessidade de revitalização dos rios e recuperação das bacias hidrográficas. Bacia hidrográfica nada mais é do que uma área em que toda a água que chove escorre para um rio principal. Delimitada pelos chamados “divisores de águas” (áreas com relevo mais alto), a bacia hidrográfica é um conceito fundamental na gestão das águas, pois mostra que um rio principal é o espelho de como toda a bacia hidrográfica é gerida. Um exemplo: se há desmatamento e solo exposto em um ponto da bacia hidrográfica, quando chove, a terra pode ser carreada para um rio, causando assoreamento (processo de acúmulo de substâncias minerais ou orgânicas, carregadas das partes mais altas até as mais baixas, em um corpo d’água, causando a diminuição da profundidade e do volume de água, além de ser um dos principais processos de poluição da água.), o qual pode chegar até o rio principal da bacia. Outros exemplos são a contaminação da água por agrotóxicos utilizados em cultivos agrícolas e carreados até o rio, bem como a situação em que a chuva leva, até o rio, um resíduo disposto de forma inadequada, seja em área urbana ou rural. Qualquer uma dessas situações, quando ocorre à montante na bacia (de onde vem o rio) pode comprometer o uso da água à jusante (para onde o rio corre). Para se ter água de boa qualidade no Rio Piracicaba, por exemplo, não basta o município de Piracicaba cuidar do seu território e de sua água, mas depende, também, da colaboração de dezenas de outros municípios, como Campinas e, até mesmo, Camanducaia, que está em Minas Gerais, mas guarda importantes nascentes de afluentes do Rio Piracicaba, ou seja, nascentes de rios que vão formar o Rio Piracicaba.

Visto a importância da bacia hidrográfica como unidade de gestão, a qual é reconhecida nas Políticas Nacional e Estadual de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433, de 8 de janeiro, de 1997, na esfera federal, e Lei nº 7.663, de 30 de dezembro, de 1991, no Estado de São Paulo, na esfera estadual) uma ou mais bacias hidrográficas formam cada uma das vinte e uma Unidades de Gerenciamento de Recursos Hídricos (UGRHI), cada qual com seu comitê de bacia. O comitê é formado por diferentes atores sociais, que buscam assegurar água em qualidade e quantidade para todos da UGRHI.

No cenário de mudanças climáticas que estamos vivendo, os rios também são espelhos dessas mudanças. Para poder entender melhor isso, é preciso lembrar as causas das mudanças climáticas, que têm se tornado cada vez mais pujantes, com ondas de calor, ciclones tropicais, precipitações intensas, secas severas, entre outros fenômenosPrimeiro, cumpre esclarecer, que o efeito estufa é um fenômeno natural, que permite a vida, já que, se ele não existisse, o planeta seria tão frio, que a vida, como conhecemos, não seria viável. Porém, com o desmatamento, a revolução industrial e o uso de combustíveis fósseis, nós aumentamos muito a camada de gases do efeito estufa na atmosfera, de modo a causar um desequilíbrio, com aquecimento global e mudanças climáticas.

Estudos do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, 2021) mostram que, no período de 1850 a 2020, houve um aquecimento sem precedentes em 2000 anos, sendo esse o período multissecular mais quente dos últimos 100 mil anos. Tais estudos também concluem que o aquecimento observado é causado por causas antrópicas (atividades humanas), sendo muito superior à projeção de aquecimento causado apenas por fatores naturais.

A ONU confirmou que, o ano de 2024, foi o ano mais quente já registrado, com cerca de 1,55°C acima dos níveis pré-industriais. A meta de temperatura de longo prazo, do Acordo de Paris, ainda não foi perdida, mas, infelizmente, corre sério risco.

Em estudo mais recente (IPCC, 2023), foram elaborados mapas mostrando os efeitos, em cada parte do mundo, das mudanças climáticas na biodiversidade, na saúde humana e na produção de alimentos. Caso o aumento supere os 2°C, haverá perda de 80 a 90% das espécies em diversas partes do mundo, sendo esse cenário ainda pior se o aumento superar 3 ou até 4°C, considerando o Brasil um país bastante afetado. Além disso, alguns locais podem se tornar inabitáveis para o ser humano, inclusive no nosso país. O crescimento de incêndios e inundações também é significativo, bem como o aumento do nível do mar e a destruição dos recifes de corais. Se subir 2°C, por exemplo, poderá haver um aumento de 62 a 87% nos incêndios; 0,33 a 0,66mm no nível do mar; 30% nas inundações; e 99% na destruição dos corais.

Os rios espelham, também, as mudanças climáticas, de modo a ser possível ver os rios extremamente secos nas estiagens prolongadas (como aconteceu na Amazônia, nos últimos anos), bem como transbordando com as grandes inundações, como ocorreu recentemente, no Rio Grande do Sul.

No enfrentamento às mudanças climáticas, o cuidado com nossos ecossistemas naturais tem um papel fundamental. Segundo estudos realizados (Harris, 2021), as florestas removem, no mundo, 15,6 bilhões de toneladas, emitem 8,1 bilhões e colaboram com a captação de 7,6 bilhões de toneladas de gás carbônico, por ano. Assim, seria possível aumentar muito essa contribuição se conseguíssemos controlar de forma eficaz o desmatamento e proteger nossos ecossistemas naturais, já que o gás que causa grandes problemas, quando em excesso na atmosfera, é usado pelas plantas no seu processo de crescimento, por meio da fotossíntese.

No Brasil, as florestas secundárias (aquelas que se regeneraram após perturbações) removeram 784 milhões de toneladas de gás carbônico, de 1988 a 2018, sendo a Amazônia responsável por 52,21% desse total e a Mata Atlântica por 31,08%. Com isso, a restauração, em áreas prioritárias, de 15% das terras convertidas em outros usos no mundo poderia causar uma diminuição de 30% no gás carbônico na atmosfera, o que corresponde a 14% de todas as emissões, desde a Revolução Industrial (Strassburg et al., 2020).

Além da captação do carbono, os ecossistemas naturais também têm um papel muito importante no ciclo da água, aumentando significativamente a infiltração da água (Shawul; Charma; Melesse, 2019), contribuindo na recarga dos aquíferos (Hoffman; Scheibe; Nanni, 2022) e na conservação da qualidade da água (Mello, 2018).

Tais ecossistemas também são fundamentais na formação das chuvas, como no fenômeno da Amazônia conhecido como “rios voadores”, pelo qual a água do oceano evapora e vai para o continente, produzindo fortes chuvas na Amazônia, há a evapotranspiração das florestas da região e esse “rio voador” leva chuva para grande parte do Brasil (até 3 mil quilômetros continente adentro), inclusive o sudeste. As florestas são tão importantes nesse processo que um km2 de floresta gera muito mais condensação em nuvens do que a mesma área de superfície oceânica, sendo que a transpiração na Bacia Amazônica gera 20 trilhões de litros por dia, mais do que o volume despejado pelo Rio Amazonas no oceano Atlântico! (Nobre, 2014).

Um documentário interessante sobre o tema é o “Amazônia Climática: a floresta de hoje e do amanhã”, produzido no âmbito de um projeto do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NOfYliZdCiQ.

 

Assim, observa-se a necessidade de medidas urgentes de mitigação (para diminuir a emissão de gases do efeito estufa e aumentar sua captação) e de adaptação (a fim de reduzir a vulnerabilidade dos sistemas naturais e humanos aos efeitos das mudanças climáticas). Nesse sentido, destaca-se a importância das soluções baseadas na natureza, as quais, além de auxiliar no enfrentamento às mudanças climáticas, geram bem-estar, serviços ecossistêmicos, resiliência e benefícios à biodiversidade. São medidas referentes à conservação, uso sustentável e gestão de recursos naturais.

Além disso, no enfrentamento às mudanças climáticas é preciso nos lembrarmos do óbvio: nós fazemos parte da natureza. A água e os ecossistemas naturais não são simplesmente recursos, pois nós fazemos parte de todo esse sistema. Não é possível enfrentar a crise climática sem rever nossa forma de ser e estar no mundo, ou seja, nossos valores e sistema socioeconômico, baseado em uma produção sempre crescente para um consumo cada vez maior, o que é, em si, insustentável, pois exige recursos também crescentes. É preciso construir sociedades sustentáveis, aquelas que, segundo Sorrentino (1997), se caminha para sociedades (cada uma com suas especificidades) com qualidade de vida para todos e não mais baseadas na exploração do ser humano e natureza.

Nesse caminho, o combate às desigualdades sociais tem um papel fundamental, bem como rever os valores que nos guiam como humanidade. Parar o uso de combustíveis fósseis e o desmatamento, por exemplo, são medidas urgentes, mas que não ocorrem devido aos interesses econômicos e financeiros serem colocados em primeiro lugar. Apesar dos inúmeros encontros internacionais sobre o tema (Conferência das Partes – COP: encontro anual de países, que tem como principal objetivo discutir medidas e soluções para diminuir a emissão de gases do efeito estufa) e a existência de mecanismos como o Acordo de Paris, nenhum compromisso realmente concreto e eficiente tem sido acordado mundialmente. Ou os acordos não ocorrem (como o prazo para o uso dos combustíveis fósseis, por exemplo) ou não são cumpridos (como o antigo Protocolo de Kyoto). O Acordo de Paris e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) são acordos internacionais importantes e que têm impulsionado ações sustentáveis, mas ainda têm resultados bastante aquém dos necessários para o enfrentamento de toda essa crise socioambiental, climática e civilizatória.

Nesse contexto, a Educação Ambiental é fundamental, a qual esteja comprometida com uma visão crítica da crise ambiental (com suas diversas facetas, atores sociais e interesses) e com o engajamento das pessoas na transformação dos mecanismos que alimentam essa crise (Palmieri; Massabni, 2020). A partir dessa compreensão e ação, é preciso incorporar a dimensão socioambiental em todas as políticas públicas (não só nas ambientais, mas nas referentes à educação, saúde, energia etc.), as quais sejam voltadas, também, ao combate à desigualdade social e inclusão de todos; valorizar os espaços de participação social na construção e implementação de políticas públicas (como comitês de bacia, conselhos, etc.); desenvolver a pesquisa científica comprometida com a construção de sociedades sustentáveis; homologar e proteger as terras indígenas e quilombolas e valorizar as culturas indígenas e de outras comunidades tradicionais; desenvolver uma gestão participativa e eficaz das áreas protegidas; aprimorar a fiscalização contra o desmatamento ilegal; parar os retrocessos na legislação ambiental e trabalhar para o seu aprimoramento e implementação; promover incentivos econômicos e financeiros para a conservação ambiental e o uso sustentável dos recursos naturais; promover a “agroecologização” dos territórios; valorizar e incentivar a economia circular e solidária, entre outras medidas.

Também é preciso ter cuidado com as “falsas soluções”. Em nome da captação de carbono, projetos têm sido implementados de forma a comunidades tradicionais não serem participantes ativas e não terem seu modo de vida respeitado. Em nome da energia renovável, grandes hidrelétricas têm sido feitas sem se respeitar os estudos socioambientais e a participação da sociedade em tais discussões. O “greenwashing” (“lavagem verde”, que apresenta falsas soluções para os problemas ambientais) tem sido crescente, de modo a se adotar ações com o discurso de serem sustentáveis, quando na verdade causam diversos problemas socioambientais e servem apenas aos interesses econômicos e financeiros de grupos específicos.

Considerando a discussão aqui apresentada, os rios são espelhos da sociedade e, para cuidar deles, não bastam ações de uso consciente da água, tratamento de efluentes e cuidado com suas matas ciliares, embora tais ações sejam fundamentais. As soluções passam por cuidarmos de nossos territórios, como um todo (bacias hidrográficas) e repensar nossos valores como sociedade, nossa produção, nosso consumo, nossas prioridades. Passam por nos lembrar que habitamos um só planeta, o qual existe tranquilamente sem o ser humano. Mas, nós não existimos sem a Terra em condições para a vida florescer.

 

Saiba mais:

Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – 13 –
Ação contra a mudança global do clima. Adotar medidas urgentes para combater as alterações climáticas e os seus impactos. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/13

Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – 14 –
Vida na água. Conservar e usar de forma sustentável os oceanos, mares e os recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/14

 

 

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Texto: Maria Luisa Bonazzi Palmieri – IPA
Revisão de Texto: Denise Scabin – CEA/SEMIL
Gestão de conteúdo, planejamento e arte: Cibele Aguirre – CEA/ SEMIL

 

 

Referências

IPCC. Mudança do Clima 2021 – A Base Científica. Disponível em: https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/sirene/publicacoes/relatorios-do-ipcc/arquivos/pdf/IPCC_mudanca2.pdf
IPCC. MUDANÇA DO CLIMA 2023 – Relatório Síntese. Disponível em: https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/sirene/publicacoes/relatorios-do-ipcc/arquivos/pdf/copy_of_IPCC_Longer_Report_2023_Portugues.pdf
Harris et al., 2021. Florestas absorvem duas vezes mais CO2 do que emitem por ano. Disponível em: https://www.wribrasil.org.br/noticias/florestas-absorvem-duas-vezes-mais-co2-do-que-emitem-por-ano
Hoffman; Scheibe; Nanni, 2022. EFEITOS DA MODIFICAÇÃO DO USO E COBERTURA DA TERRA NO COMPORTAMENTO DA RECARGA E DESCARGA EM UMA PORÇÃO DO SISTEMA AQUÍFERO INTEGRADO GUARANI/SERRA GERAL. Disponível em:  https://revistas.ufpr.br/raega/rt/printerFriendly/75297/0
Nature. Global priority areas for ecosystem restoration. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41586-020-2784-9
Nobre, 2014. Disponível em: http://www.ccst.inpe.br/wp-content/uploads/2014/11/Futuro-Climatico-da-Amazonia.pdf
ONU BRASIL. ONU confirma 2024 como o ano mais quente já registrado, com cerca de 1,55°C acima dos níveis pré-industriais. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/287173-onu-confirma-2024-como-o-ano-mais-quente-j%C3%A1-registrado-com-cerca-de-155%C2%B0c-acima-dos-n%C3%ADveis#:~:text=n%C3%ADveis%20pr%C3%A9%2Dindustriais-,ONU%20confirma%202024%20como%20o%20ano%20mais%20quente%20j%C3%A1%20registrado,acima%20dos%20n%C3%ADveis%20pr%C3%A9%2Dindustriais&text=A%20Organiza%C3%A7%C3%A3o%20Meteorol%C3%B3gica%20Mundial%20(OMM,seis%20conjuntos%20de%20dados%20internacionais.
Palmieri; Massabni, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/asoc/a/XNzVqjQW4sLB3PZCNPMx7Sk/?lang=pt&format=pdf
ScienceDirect. The response of water balance components to land cover change based on hydrologic modeling and partial least squares regression (PLSR) analysis in the Upper Awash Basin. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S221458181930254X?via%3Dihub
SORRENTINO, M. Vinte anos de Tbilisi, cinco da Rio-92: A Educação Ambiental no Brasil. Debates Socioambientais. São Paulo, CEDEC, ano II, n. 7, p. 3-5, jun./set. 1997.
WRI BRASIL. Florestas absorvem duas vezes mais CO2 do que emitem por ano. Disponível em: https://www.wribrasil.org.br/noticias/florestas-absorvem-duas-vezes-mais-co2-do-que-emitem-por-ano